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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O ANO DE KAZUMBULA

Para quem não conhece a cultura dos povos kimbundu originários da região de Ambaca (antiga capital do reino do Ndongo) hoje Dondo - Província do Kwanza Norte, Kazumbula é o nome dado ao último filho de uma mãe que morre, por acidente ou destino, depois do parto. Os filhos que assim nascem ganham má reputação na comunidade. São tidos como assassinos da própria mãe e como tal odiados ou despresados. Por azar dos pecados, Kamalangabangaba era um desses "kazumbulas" que ganham mau destino por terem a mãe desaparecida e a comunidade desinteressada no seu ser e estar. Ciente desta realidade, kazumbula entregava-se de corpo e alma em tudo quanto fizesse para ser aceite como igual aos outros meninos e fazer desaparecer o mito dos "kazumbulas". E a natureza dotara-lhe de habilidades fenomenais. Podia trepar arvores altas, carregar cargas como um burro, carretar água há kilometros de distância, transportar lenhas pesadas, cortar troncos largos, caçar toda espécie de animais e insectos entre outras habilidades e façanhas. Entre as raparigas tinha a fama de se prestar a todo o tipo de serviço a troco de nada, entre os rapazes, a capacidade de suportar os piores vexames e insultos entre os velhos a capacidade de ser útil em tudo e mais alguma coisa! Era um verdadeiro "pau mandado" ou camelo se quisermos ao serviço de todas as almas, boas e ruins, bem intencionadas e mal desejadas! Não fazia por burrice ou atraso mental e nem por distracção ou diversão. Era a sua estratégia de integração na comunidade que nunca o perdoou por culpa que não era dele e por ódio e desprezo que a própria comunidade não entendia. Apesar disto, a sua condição selou o destino. Todos queriam os préstimos de Kamalangabangaba mas quando adoecesse, tivesse fome, sede ou problemas de qualquer tipo, ninguém se lembrava sequer da sua existência. Abondonava-no até que um viajante, animal, planta ou sorte se encarregasse de lhe suprir a necessidade ou curar a doença. Devido a necessidade de ser médico de si mesmo, Kamalangabangaba se tornara num verdadeiro especialista em muitas coisas ligadas a cura: plantas medicinais, tratamento com fezes ou pedras, asas de insectos ou de morcego, enfim, não fosse ter a sua "farmâcia" escondida longe do kimbo seria facilmente confundido com bruxo ou kimbandeiro da liga do mal. Entretanto, ninguém mesmo sabia que ele dormia no curral de bois da comunidade e que uma vaca, provavelmente enviada por Deus, lhe amamentou e alimentou junto de bezerros até se tornar um dos membros do curral. Nem mesmo lhe lembravam dos parentes que desapareceram sem deixar rastos após a morte da mãe, quando tinha apenas dias de idade. Era uma espécie de Tarzan criado por bois sem contudo ser entendido por estes porque nem mesmo no curral o gado se prestava a confiança de um kazumbula, apesar da convivência pacífica. A comunidade sabia apenas que Kazumbula existia. Era um facto! E assim foram dias, semanas, anos e por aí fora. Até que um dia, a saudade pela mãe bateu forte no peito e a solidão com ela que decidiu desaperecer pelo mundo fora. Descobrir um mundo sem kazumbulas ou uma mãe mesmo. Achou-se iluminado pela ideia e decidiu partilhar com a comunidade. Era em vão que procurava contar o seu projecto. Ou era interrompido por brincadeiras, conversas ou gargalhadas sem relação com assunto. Só a velha Kingoho, por surdez, ficou impávida a olhar para os movimentos da boca do miúdo entusiasmado com a viagem. Mesmo assim, decidiu despedir-se de todos, na vºa esperança de uma festa ou reunião de despedida. Nada disso aconteceu. Ao aceno da sua mão ou grito de adeus ninguém se prestava a olhar ou a corresponder o aceno. Alguns até nem se apercebiam dos seus gritos ou acenos. Mesmo a saida do kimbo só o gado mugia a sua passagem, os pastores nem sequer se apercebaram da sua passagem entre o gado. Assim partiu para bem longe sem mapa nem bússula. Passaram-se dias e dias, e a comunidade descobria-se sem a presença de Kamalangabangaba. O capim invadia as casas, o campo de futebol improvisado afundava no capim, as fezes do gado, das cabras, porcos e galinhas invadiam as casas. Perante o descuido repentino e falta generalisada de saneamento básico, todos gritavam pelo mato, pelo kimbo e pelos cantos das casas a procura de Kamalangabangaba com eco sem sucesso. Ninguém sabia explicar o paradeiro da mascote do kimbo. O rapaz desaparecera como do nada para nada. O ano passava e a comunidade via a sua economia a afundar dia após dia. As lavras deixaram de produzir, o gado emagreceu e morreu, as galinhas, os patos e outras aves morreram de "kibhubhe", os coelhos e porco da india de peste até os bichos do mato começaram afastar-se para bem longe impossibilitando a caça. O capim fresco começou a escassear dando lugar ao capim ruim que os animais não podiam comer. A chuva parou de cair ao rítmo diário sem data de regresso. As crianças começaram a adoecer e a morrer. A água do rio desaparecera com a seca que tomou conta da região. De tão grave a situação os velhos e o soba reuniram para tomar medidas urgentes sem sucesso. Especulavam sobre tudo. culpados da crise eram todos: feiticeiros, sereias, mahambas, kifumbes, kazungus e tudo, mas nada! Assim a aldeia foi minguando, minguando... num ano de azares e desgraças, desesperos e fome. Num ano em que Kazumbula partiu em busca de esperança e amor, em busca de parentes e amigos: Era o ano de Kazumbula!

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